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Arte e pesadelo como ferramentas de sedução em Cisne Negro


Não é à toa que o novo filme do estadunidense Darren Aranofsky, Black Swan (Cisne Negro, em tradução literal), tem suscitado tantos burburinhos. Isto porque a sensibilidade do diretor está transposta de forma extrema para as telas na história de Nina Seers (Natalie Portman, favorita ao Oscar de melhor atriz e vencedora do Globo de Ouro e o do Sindicato dos Atores pelo papel), bailarina extremamente disciplinada e perfeccionista escolhida como a Rainha dos Cisnes, numa nova encenação de O Lago dos Cisnes, do russo Tchaikovsky.

De antemão, todo o preconceito relacionado ao balé e à dança clássica é desestruturado com a visão hipnótica e perturbadora desenhada na trama. Aranofsky utiliza uma estrutura diferente para elucidar a paranoia sofrida pela personagem, que por várias vezes chega ao terror físico, demonstrando uma busca pelo virginal existente em qualquer atividade artística – num espetáculo estético do cinema.

Adentrando um mergulho profundo da psicose humana, o longa se pauta aparentemente na superação da bailarina para interpretar o posto que lhe foi confiado. Mas o que o diretor de Réquiem para um sonho (2000) quer mostrar que está muito aquém da perfeição na ponta dos pés. A princesa Odete virginal, o Cisne Branco, já incorpora o corpo da protagonista e é facilmente interpretada com técnica e sutileza. O que lhe tira a alma e enegrece o ambiente do filme é a Odete nefasta, o Cisne Negro, que exige agressividade, mutilação e despudor – sensações que a dançarina reprime de forma tão oculta a ponto de não se reconhecer quando as tem.

A garota transformada em cisne e renegada por seu príncipe custa a adentrar às entranhas da personagem, exibindo, com maestria por Natalie Portman, um sofrimento repleto de humanidade, medo, carência e quebra com a inexistente perfeição almejada.

O grupo de coadjuvantes também contribui para a chegada da dançarina a este mundo negro e intocado. Em determinado momento, o arrogante e incisivo diretor da companhia, interpretado pelo francês Vincent Cassel, deixa claro o maior obstáculo da protagonista: “A única pessoa que está no seu caminho é você mesma”. A mãe super protetora (Barbara Hershey) também a sufoca e surta ao ver que a redoma de vidro construída não foi suficiente para proteger a filha de seu verdadeiro eu. A colega e rival Lily (Mila Kunis) contrasta com Nina por exalar sensualidade e desejar seu papel – o que também a desestrutura.

A dicotomia entre bem e mal fica tangível nas cores dos cisnes, que desenham ainda uma nova Nina – que descobre que o inferno não é tão mefistofélico quanto imaginava. O estereótipo de cisne branco arraigado à educação e à frigidez da personagem, muito próximo ao aspecto da própria atriz, vai se dissolvendo no embate que é travado com seus próprios demônios.

A todo o momento são os dois lados da moeda que vão nortear as alucinações da bailarina. Os fantasmas são tantos e tão bem alinhados às tragédias vividas pela artista, que a verossimilhança construída em sua mente acaba tomando também o espectador.

A cada instante da trama fica claro que somente levando a personagem ao inferno é que se pode extrair dela o necessário. Black Swan explicita a boa forma de Aranofsky e de sua protagonista, deixando o recado de Drummond de que “Meu ódio é o melhor de mim”; passando ainda pela máxima nietzschiana na qual a “Tragédia é criadora da forma”.

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