Vivi por deliciosos anos numa casa simples, minúscula, mas aconchegante, cuja proprietária era, e ainda é, uma pessoa que eu intitulava “de Deus”. Meio piada interna o nome, mas é possível entender. Crente fervorosa, ela tinha lá seus chiliques religiosos. Externava, como se as palavras não coubessem à boca, todos os seus infortúnios e insucessos a Ele. E a mim cabia um só lugar: não acabar com a esperança religiosa, seja lá de quem fosse, nem questionar os caminhos à qual perpassaram essa esperança. Uma postura repressora frente à fé alheia nunca é justa. Assumo ser quase preconceito questionar a fé, achar-se melhor que alguém a ponto de delinear modelo de vida embasado em minha opinião quase religiosa. E assim evito, ainda hoje, suscitar assuntos permeados por fanatismo juntos aos fanáticos. A paixão impede de olhar a si — e isto vale pra mim. De qualquer jeito não importa, não é problema meu. Sempre questionei o quê aconteceria a uma pessoa se não atendesse a um chamado da noite, a um chamado de Deus. E creio que sejam poucos os seres humanos disposto a descobrir.
Fato é que dificilmente, à época, eu ouvia algo além do que realmente quisera ouvir daquela senhora. Hoje sei que ela me dava goles de paz. Ora ou outra havia um problema de ordem doméstica, daqueles em que se discute o quanto a companhia de energia elétrica aumenta as tarifas, ou sobre um curto circuito que leva junto a ele alguns poucos eletrodomésticos e afins. Mas não passava disso. Tivemos, sim, um vento de desconforto que perdurou alguns meses por discussões assim, e cheguei até a pensar que era melhor sair dali. Mas isto se foi, já é lenda. Passado um tempo ela precisou da casa e tive que sair. Sempre me saudava com um “só Deus para nos ajudar” e em minha saída não foi diferente. As coisas acabaram bem assim. Eu quase conseguia crer.
Fora ali, naquela casa, inclusive, que minha pseudo-vida adulta se enraizou. Ainda não sei se posso afirmar isso. Digo pseudo porque naquele momento, mesmo após ter escolhido estar só, minha família ainda era porto seguro. Oquei. Até o momento eles me saúdam com uma ajuda que beira o virginal. E a um e a outro agradeço: à família, pelo afeto, e à ajuda, pela ajuda.
Na casa dos vinte sai de casa por conta do amor. O anel que tu me deste era vidro e se quebrou e o amor, pela primeira vez em minha história, se acabou. Descobri que só amar não resolve. Aliás, amar por amar é fácil. Difícil é amar o quê é fácil mesmo. Amar o café da manhã, o Jornal Nacional no sofá, o mau humor, amar a falta de grana, o mês maior do que o dinheiro. Difícil também é entender que o amor não alimenta tudo, não salvaguarda certas coisas. É preciso ponderação, anulação e outros verbos que nos sublimam. E aí descobri que era hora de voltar.
À época, o cuspe áspero que a vida fez escorrer em minha cara me cobriu a face, e foi a sagrada mãe que me salvou. A minha mesmo, não a de Jesus como diria minha ex-vizinha. Me recebeu com a cama feita, às gargalhadas e com o mesmo semblante vivo que me disse “tchau” coisa de um ano e meio antes. Poucos dias antes de eu partir em nome do amor, no início dessa estória, quando eu levava minha mãe ao ponto de ônibus como sempre fora todas as manhãs, ela me disse também que não conseguiria imaginar fazer aquele mesmo caminho de tantos anos sem mim. E o fez. Ter esse medo era a amaldiçoada glória da escuridão materna, que as mães enfrentam aos risos, muito mais frenéticas e firmes do que nós.
Ali eu permaneci, até que o amor materno secasse as feridas e eu pudesse dar um passo ou outro sozinho. Não custou tanto. Fiquei nos braços de outro amor, mais vivo. A certeza e a paz que se podem sentir num momento assim é um vômito que nos livra de outro vômito maior: o vômito da alma. E esta eu não cuspi para fora. Graças à minha progenitora.
Agora as coisas não iam bem. Depois que me mudei da primeira casa de minha vida adulta, aquela da mulher “de Deus”, acabei caindo num perfeito buraco. Era uma casa tão pequena quanto a anterior, com seus cômodos assimétricos e um espaço externo desses que chamam por aí de quintal. Eu estava, como de costume, sem um puto no bolso e não poderia escolher muita coisa. Os sonhos eram os mesmos, há muito tempo, mas não havia mais tanto tempo pra sonhar.
Me mudei — e aqui digo foda-se ao pronome obliquo átomo —, trouxe a meia dúzia de pertences que tinha e ali fiquei, acostumando a viver a nova condição. O barulho era infernal, os vizinhos/companheiros de casa eram ratos, mecânicos e o calor era senegalês. Pra ajudar, pouco depois passei a figurar ao lado dos desempregados. Fiz uns biscates, trabalhos que eu na verdade pouco dominava, mas que saiam, e assim consegui levantar uns trocos para respirar por um tempo.
O quê acontece à vida quando fazemos o que queremos com ela? Nada acontece. Por isso eu bebia um ócio interminável — que em momento algum passava por aquela teoria do ócio criativo. Vivia o ritmo daquela casa com minha presença constante. Pouco sabia que ali um mundo secreto se abrira contra mim. O céu era negro mesmo sendo estampado por um branco pálido.
Durante o dia, seres jamais vistos tramavam meu desalento, num plano que mesclava terror e asco, e que até o momento não tinha sido levado a mim. A noite era deles. Certo dia cheguei à casa e notei um pó que não fora trazido pelo vento, chamuscado sobre a cama. Um buraco no teto denunciava sua origem. Não me importei. O calor era de janeiro, e as chuvas e os ventos estavam endemoninhados. Por isso julguei que houve ali uma simples tremedeira no teto, a ponto de causar a queda do pó. Por isso — o calor, a chuva e os ventos —, era comum também ver ratos e outros sobreviventes “à chacina e à lei do cão” passear pelas ruas. Mas não em meu quase lar.
Era coisa de cinco da manhã e os litros d´água que eu ingerira antes do sono me pediam para sair. Na negridão do quarto um cheiro, que felizmente não se pode descrever aqui, se fazia presente. Com salto olímpico fui arrancado da cama até a luz. E então vi, de forma tangível, o inferno. A morada dos tenazes roedores, ao teto, havia cuspido larvas e todo tipo de dejetos que pouco cabem às palavras. Um pandemônio. A incerteza de ação me fez titubear por alguns segundos até crer que aquela era minha vida. Eu preferiria não entender, ser um estrangeiro de mim mesmo. Mas tive que agir, entre a loucura e a lucidez, eu estava vivo. Descobri que minha vida poderia acabar numa faxina em plena madrugada, afirmando o jargão de que “é do inferno que se vê o céu” e saudando a saudade da casa “de Deus”.
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