Pular para o conteúdo principal

Corpo e metrópole: o gosto nos grandes centros

O corpo comunica. A metrópole comunica. Quando o fazem, usam ferramentas da linguagem; que perpassam por expressões visuais, sonoras ou escritas. É parte da cultura da metrópole o que ela comunica. A cultura, neste sentido, pode ser entendida como o sistema representativo — construído por elementos sígnicos — que narra os costumes, as formas de vidas, a filosofia e os meios de representar a realidade de determinado povo.
Tendo o corpo como mídia primária, podemos afirmar que é ele o determinante quando se pensa na formulação dessa cultura, aqui, vista como gosto. O individuo altera a si próprio e a sua cultura a partir daquilo que observa no outro e no espaço comum. A troca entre objetos e corpos no campo urbano se torna constante e infindável.
O “escambo” contínuo da imagem metamorfoseia o gosto, amplia e difunde pela mescla de tendências que podem ser vistas a todo instante na metrópole. Seria promíscuo dizer que os meios de comunicação não são influentes no processo. Sim, eles exercem um papel importante no desenho do gosto coletivo, impõem o que é esteticamente aceito. Contudo, o apelo visual encontrando nos corpos é muito mais vivo, forte, tangível; possibilitando assim a percepção maior do gosto estético baseado no outro.
O desenho idealizado do corpo, através de suas formas, vestimentas e adereços, cria a comunicação ao seu modo. Este diálogo — estabelecido com os inúmeros signos corpóreos — tem relação direta com o gosto, a partir do momento em que o individuo adota formas e trajes por se identificar, e por ver neles um meio de ser reconhecido. O sujeito se torna símbolo e parte constituinte da representação que se tem das metrópoles.

Mas como o diálogo entre corpo e metrópole pode impor um gosto coletivo?

O questionamento requer breve conceituação. É a cultura do homem urbano que vai formular o gosto. Aqui, ela é quem produz este diálogo, estabelecido pela própria representação de vida que o homem faz de si. Evitando olhar de forma nua para o “eu”, o indivíduo urbanóide recria a realidade vencendo, assim, angústias, medos e dúvidas por meio de códigos que pretensamente trazem superação de um pseudo mal-estar — notadamente, em nível simbólico. O corpo, neste caso, trabalha como ferramenta de transporte da imagem de um homem forte, invencível, que conhece profundamente a si em diálogo direto com a metrópole.
A venda dessa imagem fortificada é que pode construir o gosto massificado. Parece complexo, mas não é. Como o ser urbanóide tem por premissa vender uma imagem sólida, ele adere a símbolos coletivos que representam esta fortificação. Estes símbolos ficarão transparentes no corpo, e é aí que se encontra o gosto. Conhecemos superficialmente o outro, mas compramos sua imagem corpórea que, embasada nos preceitos urbanos, pretende ser viril. Para passar essa imagem, o indivíduo unifica seu gosto dentro do padrão de corpo aceito pela metrópole; pautado na imagem do homem forte, urbano, que conhece a si mesmo. Notadamente não podemos generalizar, visto que o conceito é abstrato e imensurável. Contudo, é visível a influencia que o corpo alheio exerce em nosso próprio gosto.
Os meios de comunicação também são imprescindíveis ao processo — propagando uma imagem estereotipada do ser —, mas outros itens culminaram na construção deste símbolo. Não é apenas a televisão, o rádio ou o jornal que vão pautar o comportamento corpóreo e estético do indivíduo urbanóide, mas a multiplicidade de corpos e espaços com que ele se relaciona.
Ao andar nas ruas, dentro de shoppings e galerias, o indivíduo recebe e envia informações por signos do olhar e do corpo. Observando o outro, decodifico signos que estão agregados a adereços, modos de andar, sorrisos, formas comportamentais no geral que são aceitas ou rejeitadas nessa troca constante, concernentes ao meu próprio gosto.
O homem pós-moderno se espelha no outro, quer ser igual — e ao mesmo tempo construir traços específicos de seu visual. Procuro informações no corpo do outro, porém é o meu próprio corpo que pretendo modificar com os códigos que observo e acato. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, o corpo quer ganhar espaço único com essa absolvição, quer obter aquilo que soa positivo e que, ao seu óculo, será bem “visualizado” por um terceiro. Tudo ocorre de forma implícita, silenciosa, com a reconstrução e a dessimbolização de dados códigos culturas, constituindo, assim, de forma efetiva, um gosto massificado numa metrópole.
O processo de afirmação e negação de si mesmo no corpo alheio é mais intenso por conta da pluralidade de comportamentos das grandes cidades. A rua, a boate, o trânsito, a lanchonete, o cinema, enfim tudo está carregado de símbolos que ora são heterogêneos, ora são massificados — e que, inegavelmente, se reconstroem a cada instante por conta de novos olhares. A metrópole vive uma semiose constante, assim como quem nela habita.

Status game: troca implícita

É a idéia de status game, teorizada pelo antropólogo italiano Massimo Canevacci, que explica a troca constante que o corpo recebe do outro pelo olhar. Os muitos signos da metrópole acabam desenvolvendo essa capacidade humana, principalmente nas novas gerações, de decodificar o outro. Aqui, a idéia é expor o corpo como símbolo da cultura de determinado indivíduo, gerando, assim, conflitos corpóreos por conta das diferenças apresentadas. Contudo, trata-se de um conflito implícito de olhares que podem seduzir, causar indiferença ou até mesmo asco. Há um campo invisível e representativo do conflito corpóreo urbano. O campeão é aquele que melhor decodificar e reconstruir simultaneamente seu gosto.
Não são poucos os lugares em que corpos se cruzam. Observando, por exemplo, um indivíduo num restaurante, facilmente relacionamos símbolos à vestimenta, ao cabelo, ao perfume e a outros milhões de itens que acabam produzindo olhares do que é aquele corpo. Chegamos a deduzir detalhes da vida da pessoa por conta das particularidades, tentando avaliar o que o sujeito faz, os tipos de pessoas com que ele se relaciona, o gosto estético e afins. Assistimos ao espetáculo de nós mesmos na construção de signos nascituros do outro. A maior simbologia do gosto é criada justamente pela relação entre o que olha e o que é olhado.
Ao olhar do outro, a imagem ganha significado e pode, com isso, ser absolvida ou ignorada. Tanto esta quanto aquela vão trazer novo sistema de dessimbolização e simbolização constantes, emanados por corpos que se tornaram mercadorias orgânicas dentro do contexto comunicativo. É digno ressaltar que o corpo é uma imagem e, por ser imagem, é algo construído. Isto posto, não podemos deixar de ler o corpo, em alguns momentos, como imposição social e cultural do gosto. Você consome o outro e simboliza o seu real através disto.

Disponível em: http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=8379

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A corpolatria faz suas vítimas

Não raro os padrões de beleza – ou a falta destes – inquietam milhões de pessoas. Muitos homens e mulheres têm a pretensão de se enquadrarem ao que é esteticamente aceito e, focados nisto, acabam por escravizar seus hábitos mais simples em busca da perfeição. Comer menos, beber menos, dormir menos, viver menos; tudo em prol da pseudo-beleza. Mas não paramos por aí. Modificar determinados hábitos parece não saciar a histeria estética. Dados da Organização Mundial de Saúde apontam crescente aumento nos casos de bulimia e anorexia – sendo que 20% dos incidentes terminam em morte. Provocar o próprio vômito para evitar a nutrição, no caso do bulímico, ou manter-se numa fome contínua, no caso do anoréxico, não são mais problemas quando o objetivo é estar dentro do estereótipo do sublime. Esta busca incessante confunde as prioridade humanas e acaba sobrepondo valores morais e éticos. Óbvio, alguém lucra com isso. A milionária indústria da beleza alucina seus clientes com a premissa de que, ao

Sobre a falta

Clarice Lispector afirmou: “Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém, que o que mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la…” Estranho? Possível. Mais possível ainda, e pior, é sofrer a dor da falta antes mesmo de vivenciá-la. Ouso afirmar, que só a sinto antes que aconteça. O quão somos dependentes uns dos outros. Justamente por ser o outro – o não-eu, o que na sua própria negação traz a minha afirmação, o que não possui e nunca irá possuir a potenciabilidade de tornar-se eu –, é que nos apaixonamos pelo desejo de sentir sua falta, mesmo ainda estando ao seu lado. Não nos momentos em que sonhamos com esse alguém, mas nos momentos em que o temos, esse sim é o momento da maior dor. Olhar ao lado e entender que aquilo está se findando, é alimentar o suplício. Melhor que não entender? Não sei... O pior é entender que há uma classificação implícita, que avalia a força deste sentimento. Pessoas por medida. É, pessoas que podemos ficar dias, meses, sécul

Palavra amor

"Não facilite com a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão. Não se inebrie com o seu engalanado som. Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro). Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. Não a pronuncie".