Pensava em redigir algo. Parece-me que, quanto mais se pensa, menos realmente se tem meios para começar. Ao me indagar sobre o vento lá fora, o cheiro da chuva que caia e as férias que ainda não atribui utilidade; descobri que não pensava, apenas movia minha mente - como uma engrenagem de automação, ela se move, mas não resolve quando deve se mover. Tinha para mim que o real exercício do pensamento não consistia em passear pelos horríveis jargões das conversas de elevador. Precisava do não habitado, o intacto, o virginal. Só então percebi que, fora contaminado, já havia pensado.
Olhava ao meu redor, observava a dupla de donzelas que se encontravam à minha frente e à minha direita. Sentia-me cercado por tudo que gurias com trinta e poucos anos gostariam de ser. A mulher de família, com óculos fundos, um sorriso médio no rosto que demonstra o semblante de quem é a boa mãe, a melhor funcionária do mês ou, para os mais dilatados, a meretriz que facilmente pode ser vista a partir das dezenove horas na Rua Augusta.
Claro, peço perdão aos advogados da instituição ‘mulher’, pela discrepância na comparação. Soa como um desavergonhado que quer ver a linhagem desmoralizada. Mas não é isso, fato é que, na minha visão, não há disparidade. Com o perdão do clichê, ambas são ‘batalhadoras’.
Involuntariamente caíram num destino de mulher, imaginando desenhar suas próprias vidas, construindo seu dia a dia regado às desilusões e aos banhos de água fria para – num futuro que não existe –, encontrar uma vida dessas de ‘gente honesta’. De sol a sol constroem seus alicerces, colocando os baldes de concreto com o mesmo entusiasmo que uma criança deleita-se comendo um algodão doce.
Mas voltemos ao tema, se é que há um. Começo a analisar melhor alguns traços, como um telespectador. Traços humanos mesmo. Traços daquela mulher que entra no ônibus com três sacolas, segurando a mão do menino de três anos e com o de apenas seis meses nos braços. Agi como uma contorcionista, consegue desvencilhar-se de todo o mundo que está em suas mãos e, como um polvo, paga ao cobrador a suada passagem, pedindo permissão para desembarcar pela porta dianteira. Aquilo dói, dá um rubor no rosto que aparece aos olhos nus. Mas é interno, ela não quer sentir.
Elas são milhões: Marias, Bernadetes, Joanas, Magalis, Cleusas e Martas. A roupa que as compõe é sempre a mais sofrida. Tem disso, eles vêm sempre em primeiro lugar. Precisam do lápis de cor, da bolacha recheada, da espada de plástico e o mais importante, do chacoalhão no cabelo seguido do beijo de afago na testa. E o marido – quem disse que existe marido? Não passa de lenda.
Nas sacolas há de tudo. Aquele catálogo que traz desde o abridor de lata à cortininha do banheiro – revertido em arroz e feijão – completando a renda da família que só cresce.
Mas e se fosse à Rua Augusta? As sacolas seriam menores? A descida pela porta dianteira seria atípica? Talvez, mas olhar tacanho é o mesmo. Você é aquela que mencionam, a que pensou ter uma verdade inventada e sem perceber, viu-se numa guerra ambígua, és aliada e inimiga de si mesmo simultaneamente. Um constante desafio de tempos vazios. Ser o que se é pode custar mais caro, aliás, pode custar o nada.
A luta é constante. Sempre amor - o ódio vai pegá-la a qualquer momento. Sempre amor – o ódio vai pegá-la a qualquer momento. Não há meios. Descobrir-se nesse abismo é – mesmo lutando consigo –, o famoso padecer no paraíso (com mais um suplício de desculpas). Pois bem, se está é a da direita ou a da frente, já não consigo mensurar. A única coisa que me parece digna de se pensar, a está altura da noite, seria abraçar a minha instituição e esperar o meu beijo na testa com o máximo de afago possível. Perdoe-me.
Comentários
Cada pessoa, cada problema. Cada um tentando resolvê-los ao seu modo, com o que está ao seu alcance, e pelos meios que lhe são permitidos.
Abçs
Valquíria (www.valks5.zip.net)
Vivemos num mundo tão podre e criticamos tantas coisas, deveriamos olhar mais para estes lances e valorizar o dia...pois o amanhã a Vida pertence....e quem sabe o q vai acontecer??!!
Beijo
Dona Daia Danada..
Porque em meio a tanta gente, em meio a tantos seres que dizem ser racionais, com o batalhão a cada dia maior, a guerra fica mais difícil
Será que somos um contra o outro?
Nos auto-destruimos todos os dias?
Respiramos o ódio, a injustiça, comemos a podridão, e fazemos cara de quem gosta.
Aceitar essa normalidade, como se fosse herança de todos os angústiados.
Ou vivemos todos no mesmo mundo, mas o mundo não é o mesmo para todos.